29/07/2019
Ele nos deixou nesta 2ª feira, 29 de julho, mas o seu exemplo e ensinamentos estarão sempre conosco
por | Ricardo Fonseca
O Mestre Mário Gonzalez (22.11.1922 – 29.07.2019), o maior golfista do Brasil de todos os tempos, nos deixou nesta segunda-feira, 29 de julho, aos 96 anos, quase 90 deles dedicados ao golfe. Seus feitos, excepcionais, que encantaram gerações, e seu exemplo de vida permanecerão conosco para sempre e continuarão a gerar frutos muitos anos depois de sua morte.
(ao lado, de cima para baixo) com sua estátua, no Gávea Golf; recebendo, do então presidente Getúlio Vargas, o prêmio de campeão brasileiro; com Pilar, sua mulher; com Roberto de Vicenzo; com Pilar, Maria Alice, Jaime e Marinho; com José Antônio do Nascimento Brito, Pilar e Vicky White; apoiando a campanha do Rio 2016; com Richard Conolly; com Bobby Jones; com Álvaro Almeida, que instituiu a Taça Mario Gonzalez; e concedendo entrevista a Ricardo Fonseca
Mário foi um homem que aprendemos a reverenciar não apenas por seu talento, mas sobretudo por sua educação, generosidade, cavalheirismo e modéstia, qualidades que ele fez questão de transmitir a todos os seus alunos, juntamente com os fundamentos do golfe que o pai ensinou-lhe desde os dois anos, quando ele se mudou com a família de Santana do Livramento (RS) para morar no antigo campo do São Paulo GC, no Morro dos Ingleses, quando o clube o mais antigo clube de golfe do país ainda se chamava Country Club. Mário era filho do espanhol José Maria Gonzalez e da uruguaia Maria Clara Cabillon Salaberry, de família basca.
Primeiro encontro – Conheci o Mario no final de outubro de 1980, quando ele já não competia mais, sem saber quem ele era. “Foca” da sucursal paulista “O Globo”, fui surpreendido num plantão modorrento pelo telefonema de Renato Maurício Prado, editor de esportes do jornal no Rio e golfista, perguntando seu eu conhecia golfe. Traumatizado com as primeiras coberturas de futebol, ouvindo frases feitas de jogadores ainda nos chuveiros de vestiários de estádios de futebol com cheiro de mofo, apressei-me a dizer “claro”. Recebi então a incumbência de escrever meia página por dia sobre um tal australiano David Graham, que havia vencido um “major” e jogaria de quinta-feira a domingo, em São Paulo.
Apavorado, saí dali direto para a banca da Cidade Jardim, na época a maior de São Paulo, atrás de revistas de golfe estrangeiras, e nada. Fui a várias livrarias, e nada. Resignado, peguei meu bloco de anotações e fui para o primeiro dia do torneio, no São Paulo Golf Club, ver no que dava. Em plena quinta-feira havia centenas, provavelmente mais de mil pessoas, aguardando Graham começar seu jogo no “Brazilian Classic – II Heublein Open”. Rapidamente me inteirei que Graham havia vencido o PGA Championship de 1979 e vinha de um quinto lugar no Master de 1980 e que esses eram torneios do Grand Slam do golfe (venceria ainda o US Open de 1981).
Tivesse ido no dia anterior, no Pro-Am, teria visto a equipe de Mario Gonzalez, empatar em primeiro no torneio de confraternização com o time de Graham, que jogou ao lado de Antônio Carlos de Almeida Braga, o Braguinha, maior mecenas de nosso esporte, e do “príncipe” Eudes de Orleans e Bragança, futuro presidente da Confederação Brasileira de Golfe, outro que me ensinou muito de golfe, assim como Jaime Gonzalez, um dos filhos de Mário que foi tão grande quanto o pai, e Richard Conolly, ex-presidente do São Fernando GC.
Lição de golfe – Chegando ao São Paulo GC, ao lado do tee do 1, um senhor recebia com carinho todos que iam lhe cumprimentar com reverências. Esperei um momento em que esse senhor – que mais tarde soube ser o Mestre Mário – estava só e perguntei se ele jogava golfe e se iria seguir a competição. Disse que sim. “Meu problema é esse…” e expliquei a espinhosa tarefa que havia recebido. “Anda comigo”, limitou-se a dizer Mário. Com uma paciência incrível e com uma didática transparente, foi me explicando que o golfe era o jogo mais fácil de se entender – “ganha quem completar a volta com menos tacadas” -, a diferença entre os tacos, como a inclinação de cada um definia a distância e a altura do voo da bola, e até um pouco de tática “não pode errar para aquela lado que tem água, ou fora de campo”.
Para minha surpresa Renato Maurício Prado, que respondia pela editoria naqueles dias – passou a ser o editor de esportes em 1983 – disse ter adorado o texto inicial e aumentou meu espaço para os dias seguintes, com direito a boxes de entrevista, resultados, personagens etc. Era a cobertura do golfe equiparada à do futebol num jornal nacional de grande circulação. Graças ao Mestre Mário e às suas aulas, que tiveram continuação nos dias seguintes do torneio vencido por Graham, é claro, fui convidado para escrever revistas programas de golfe para a Koch Tavares e nunca mais deixei o esporte.
Orgulho – Quase 20 anos depois, já como editor-chefe do Por Dentro do Golfe, programa semanal da ESPN Brasil que durou de 1997 a 2009, fui ao Gávea para cobrir um torneio. Claro que já sabia quem era o Mestre Mário e lá estava ele, sentado na primeira mesa da varanda da piscina, debaixo de uma mangueira, com vista para os buracos 9 e 18. Fui cumprimentá-lo e aproveitei para contar a história de nosso primeiro encontro. Ele riu muito, disse que acompanhava meu trabalho pela revista Golf Sport, mensal, que editei por 11 anos, e que tinha muito orgulho de que tivesse sido ele a me introduzir no golfe. Orgulho tive eu, de tê-lo como amigo, assim como Pilar, mulher de Mário, que sempre recebeu a mim e a minha mulher, Thais Pastor, com imenso carinho.
Desde então, nunca mais fomos ao Rio de Janeiro sem parar no Gávea para pedir a benção de Mestre Mário. Ele, sempre solícito, aproveitava para contar uma história ou ensinar algo. Uma vez, ao ver quatro funcionários tirando “tiririca”, uma praga, da grama do Fairway no 9, ele me contou que estavam nisso havia horas. “Salário mínimo, trabalho mínimo”, sentenciou. Em outra oportunidade, ao comentarmos as limitações de um dirigente, saiu-se com essa: “Aprenda uma coisa, Ricardo. Dirigente de golfe só consegue pensar de acordo com seu handicap”.
Pelé do Golfe – Mário Gonzalez está para o golfe como Pelé para o futebol, ou Ayrton Senna para o automobilismo, mas ficaram lhe devendo muitas honrarias. Em 12 de dezembro de 2006, o Gávea homenageou Mário inaugurando uma estátua sua, em tamanho natural, encomendada ao artista Edgar Dulvivier, imortalizando o swing que o ajudou a vencer o Aberto da Espanha, aos 17 anos, ainda como amador, em 1947. Estive no Gávea pouco tempo depois, para o Amador do Brasil. “Agora eu fico aí, com os passarinhos fazendo sujeira em cima”, brincou Mário, ainda não totalmente à vontade com a escultura. “Eu já ganhei muitas coisas aqui no clube, mas uma estátua foi demais para mim, não acredito que mereça tanto”.
Merecia mais, muito mais. Mário deu suas primeiras tacadas aos oito anos. Em 1939, aos 17 anos, foi campeão brasileiro amador pela primeira vez. Nos dez anos seguintes, ele venceu mais oito vezes o Amador do Brasil. Em 1949, Mário virou profissional e trocou São Paulo pelo Rio, onde foi o head-pro do Gávea até 1984 (quando se aposentou e passou a ser assessor esportivo do clube, até sua morte). Nessa nova fase, Mário conquistou oito títulos do Aberto do Brasil, o último deles em 1969. Foi, ao todo, 17 vezes campeão brasileiro – amador ou profissional – durante quatro décadas.
O segredo para isso? “No jogo de golfe você tem que fazer poucas e boas e eu, por um motivo ou outro, conseguia fazer poucas”, respondeu Mário com sua tradicional modéstia. E completou com mais uma lição. “Golfe é um jogo de erros, não de acertos. Ganha quem erra menos, não que, acerta mais”. O imenso talento de Mário, felizmente, abençoou não só a ele, mas a todo o clã Gonzalez, incluindo os filhos Jaime, Marinho e Rafael; o irmão José Maria Gonzalez Filho, o Pinduca; e os sobrinhos Maria Alice Gonzalez e Priscillo Diniz. Juntos, eles somam 32 títulos de campeões – amador (23) ou profissional (9) – do Brasil.
Reconhecimento mundial – Desde 1952, quando o Aberto do Brasil passou a receber estrangeiros, Mário acostumou-se a receber e enfrentar alguns dos melhores jogadores do mundo. Por aqui passaram nomes como Bobby Jones, Sam Snead, Roberto de Vicenzo, Vicente Fernandez, Billy Casper, Peter Allis, Gene Litter, Lanny Wadkins, Ray Floyd, Jerry Pate e Bruce Fleischer. Isso para não falar de Gary Player, que se tornou o primeiro profissional do mundo a jogar 59, ao vencer o Aberto do Brasil pela segunda vez, em 1974. Foi campeão também em 1972.
Mário ganhou o respeito e a admiração de todos eles, a ponto de Bobby Jones, fundador do Augusta National, convidar Mário Gonzalez para jogar o Masters duas vezes, assim como a United States Golf Association (USGA) e o Royal & Ancient Golf Club de St. Andrews, o R&A, o convidaram para jogar o U.S. Open e o British Open. Dos quatro majors, Mário só não jogou o PGA Championship.
Majors – O melhor resultado de um brasileiro na história dos majors foi conquistado por Mário Gonzalez, em 1948, em Muirfield, na Escócia, quando ele ainda era amador. Competindo contra os melhores golfistas daquela época, como Henry Cotton, o campeão, Mário terminou em 11º lugar, para ser ainda o melhor amador do torneio. Para infelicidade de Mário, somente a partir do ano seguinte, em 1949, o R&A, que organiza o torneio, passou a premiar o melhor amador do The Open com uma medalha de prata, até hoje um dos mais cobiçados prêmios do golfe mundial.
Coube a Marcelo Stallone, que escreveu uma magnífica e imperdível biografia de Mario Gonzalez, publicada em 2015, e a mais uma dúzia de brasileiros membros do R&A, solicitarem à entidade que fosse feito algo a respeito. O R&A atendou ao apelo e, 66 anos depois de feito histórico, mandou uma carta e a medalha de prata para ser entregue a Mario Gonzalez. Devidamente paramentados com as roupas do R&A os sócios brasileiros da entidade surpreenderam o velho mestre numa manhã de outubro de 2014, no Gávea, para a cerimônia de entrega da medalha de prata de melhor amador do British Open de 1948.
Maiores feitos – Mario voltaria a passar o corte em dois majors, já jogando como profissional: em 1956, em Hoylake, quando terminou em 33º lugar, e no Masters de 1962, em Augusta, onde foi o 45º colocado, uma tacada atrás de seu irmão, José Maria Gonzalez Filho, o Pinduca, que também passou o corte no The Open de 1960, em St. Andrews, onde terminou em 40º lugar. Jaime Gonzalez, filho de Mário, passou o corte em mais três Opens: 1964, em St. Andrews (28º lugar), em 1985, no Royal St George’s (20º) e em 1981, novamente no Royal St George’s (47º).
Em 2006, por iniciativa de Luiz Felipe Lampreia, ministro das Relações Exteriores, o presidente Fernando Henrique Cardoso concedeu a Mário Gonzalez o grau de Oficial da Ordem de Rio Branco, pelos serviços prestados ao país através do golfe. Foi o segundo presidente da República a homenagear Mário, uma vez que Getúlio Vargas, seu parceiro de jogo frequente, entregou pessoalmente ao Mestre a taça de campeão amador brasileiro mais de uma vez, além de ter intercedido para que ele jogasse em seu primeiro US Open, no Colonial, em 1941, juntamente com o também amador Walter Ratto, na primeira participação de brasileiros em majors. E isso apesar de terem perdido a classificação, após o navio em que viajavam quebrar e a viagem durar 33 dias.
Mago – Há muito a falar sobre Mário Gonzalez. Stallone dedicou anos de pesquisa e um livro de 200 páginas à sua biografia e não esgotou o assunto Mário Gonzalez, a quem todos aprenderam a chamar de Mestre. Mário foi um mago do golfe, um senhor dos campos e um amigo que deixou sua marca em todos os que cruzaram o seu caminho. Mário é o golfe brasileiro e o golfe brasileiro é Mário.
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